Walter Miranda
Artista Plástico

Requiem à Maria Helena

2005

São Paulo, 19/12/2005


 

Minha mãe faleceu em julho de 2005. Este quadro é uma homenagem a ela, uma mulher extremamente honrada e digna; que lutou muito para criar sozinha a mim e ao meu irmão, Waldemir. Ela nos ensinou o sentido da palavra honestidade praticando-a todos os dias. Decididamente ela foi uma guerreira, uma leoa e uma mulher vencedora.

 

Os princípios e a base moral que ela ensinou a mim e ao Waldemir foram vividos por ela, uma mulher de grande personalidade, e é a base de nosso caráter. Essa é a grande herança que ela deixou para nós.  Eu tenho muito orgulho de ter sido filho dela. Ela cometeu erros e acertos como qualquer ser humano, mas deixou o mundo um pouco melhor do que encontrou.

 

Essa certeza me enche de orgulho a ponto de me incentivar a pintar este quadro e dividir minhas emoções com o mundo. Quero dividir com todos esses momentos em que me senti muito próximo de Deus. Aos interessados peço que leiam o texto abaixo, escrito dias após a morte dela:

 

Minha mãe vinha tendo sérios problemas de saúde desde o ano passado, passando inclusive por algumas internações hospitalares. Neste ano ela passou abril e junho hospitalizada, sendo que os últimos quinze dias de sua vida ela passou na UTI.

 

Para quem não conheceu minha mãe, é preciso dizer que estes foram momentos de intensa dor para ela, pois seu sofrimento maior seria ficar imobilizada em uma cama. Ela sempre foi dinâmica, trabalhadora e absolutamente independente. Tanto é assim que, somente em maio, conseguimos convencê-la de que já não lhe era mais possível viver sozinha e passamos a construir um quarto para ela na casa de meu irmão.

 

No dia 09/07/2005, um sábado, às 12h 45min ela sofreu uma parada cardíaca. Os  médicos não conseguiram reanimá-la e oficializaram sua morte às 12h 55min.

 

Fiquei sabendo da morte dela às 14h 30min quando fui visitá-la e não a encontrei em sua cama. Ao sair procurando-a em outras camas, os médicos perceberam minha movimentação e me comunicaram o fato. Foi um choque porque eu ainda tinha esperanças de vê-la sair do hospital e morar com meu irmão, embora o estado de saúde dela fosse grave.

  

Depois de abafar meu choro, telefonei para o meu irmão e fiquei sabendo que, ao mesmo tempo em que os médicos me comunicavam pessoalmente a morte, ele era comunicado por telefone pela administração do hospital.  Apenas uma daquelas coincidências da vida e da morte.

 

 Em seguida, fui à administração do hospital para saber como proceder burocraticamente, pois nunca havia tido uma morte em minha família. Lá recebi as devidas orientações e decidi ir à casa da minha mãe (próxima do hospital)  para buscar roupas para vesti-la. Ao retornar para o hospital encontrei meu irmão e fomos ao necrotério onde ficamos velando o corpo de nossa mãe.

 

Aqui começou acontecer uma série de situações extremamente positivas que me fizeram pensar em escrever este texto:

 

 Por mais de uma hora eu, meu irmão e minha mãe ficamos sozinhos. O corpo dela ainda estava quente e ainda não apresentava a famosa rigidez cadavérica. Aquela ainda era a nossa querida Mamãe.

 

Para mim foi uma despedida tocante quando, enquanto chorávamos, pudemos acariciá-la como nunca pudemos antes, pois para quem não sabe, minha mãe não era dada a carinhos e afagos.

  

Depois, decidimos trocá-la. Foi outro momento em que me senti próximo de minha mãe como nunca. Aquela intimidade era algo divino e sagrado onde eu me senti extremamente útil na humildade de poder servi-la uma vez mais.

  

Ao sair do necrotério, havia um por do sol maravilhoso. No horizonte havia uma faixa laranja mostrando que o calor da vida estava se recolhendo. No alto do céu, a lua já visível,  começava a ficar crescente e Júpiter lhe fazia companhia brilhando nítida e intensamente nas suas proximidades. Acho que Júpiter com sua benevolência já estava me avisando há alguns dias, pois ele aparecia muito grande e brilhante no céu das últimas tardes e eu ficava admirando-o naqueles começos de noites.

 

Após observarmos esses fenômenos naturais, fomos à funerária tratar da escolha do caixão, velório, cemitério, pagamentos, etc. Lá encontramos uma funcionária muito alegre que nos proporcionou momentos muito engraçados, como quando entrou em um caixão para ver se minha mãe caberia nele, já que seu corpo era do mesmo tamanho que o da minha mãe. Após muitas risadas e escolhas, decidimos que o velório seria curto, somente das 9 às 11hs da manhã seguinte, domingo.

   

Depois voltamos ao hospital para esperar o carro da funerária que transportaria o corpo de nossa mãe até o cemitério de Itaquera. No hospital, encontrei com a Flávia, minha esposa, e acompanhamos o corpo até o cemitério. Lá outra situação curiosa ocorreu:

 

Minha mãe sempre gostou de cachorros, chegou a ter quatro simultaneamente. Onde ela ia, brincava com os cães, mesmo que não os conhecesse ou que fossem bravos. Ao chegarmos na administração do cemitério uma pequena cachorra nos recebeu com muita alegria e nos fez companhia o tempo todo. Meu irmão brincou com ela durante muito tempo. Foi o melhor comitê de recepção que minha mãe poderia ter tido e isto nos fez um bem emocional enorme.

  

Esperamos terminar os preparativos, pedimos à administração para fechar a porta da sala até a manhã seguinte e nos despedimos daquela cachorra que nos recebera com muito carinho.

  

No domingo, eu, a Flávia e minha sogra chegamos ao cemitério às 8h 15min. No mesmo horário meu irmão também chegou. Estava uma manhã ensolarada e linda e o dia prometia ser da alegria e não da tristeza.

 

Abrimos a porta da sala onde minha mãe estava, acendemos as velas e demos inicio ao velório.

 

Minha cunhada trouxe um relógio que minha mãe gostava muito e sua dentadura para colocarmos nela. Foi um momento extremamente hilariante, diante da idéia absurda de colocarmos a dentadura em minha mãe (coisa que não fizemos, claro). Após a minha gargalhada debochada, que muitos conhecem, coloquei o relógio nela e a dentadura dentro do caixão.

  

Rezamos e nos despedimos uma vez mais. Agora, já não era a minha mãe. Era apenas um corpo gélido e duro que lembrava ter sido a morada de minha mãe. Mas, apesar disso, por diversas vezes observamos o seu semblante sereno como se estivesse dormindo. Parecia que finalmente ela estava descansando.

  

Então, outra situação marcante aconteceu: Para quem não sabe, minha mãe era evangélica. Eu, como todos sabem, pecador confesso e descrente de religiões (apesar de crer em Deus e Jesus). Por volta das 10h 30min os irmãos da igreja dela chegaram. Pediram se podiam fazer um culto e iniciaram uma cerimônia extremamente linda com músicas leves e que serviam para elevar o espírito dos presentes sem nenhum sentido piegas.

  

Após o discurso provocativo de um pastor, eu pedi para falar e fiz um depoimento pessoal de despedida e as pessoas que estavam distantes começaram a se aproximar tornando meu depoimento mais fraterno.

 

Curiosamente, meu depoimento abriu uma porta que eu não imaginava, pois lá estavam presentes mais três pastores (alguns de outra igreja) e eles fizeram depoimentos pessoais que mostraram um lado muito bonito da minha mãe, da sua participação social na comunidade organizando a montando cestas básicas para a distribuição aos pobres e outras atividades destinadas aos menos favorecidos.

  

Muitas risadas foram dadas durante esses depoimentos que lembravam algumas das características da minha mãe, uma pessoa de forte temperamento, de difícil convívio, que cobrava a responsabilidade de todos, mas com uma índole positiva e construtiva. Uma pessoa de realizações, que fazia, ao invés de ficar apenas sonhando ou criticando.

  

Foi uma cerimônia de despedida que eu jamais imaginaria pudesse acontecer com minha mãe, uma pessoa amarga e sofrida. Para minha grata surpresa ela, que nunca foi dada a festas, fez uma festa de despedida alegre e descontraída que tornou aqueles momentos leves e carinhosos. Senti esses efeitos positivos em meu coração por vários dias e ainda os sinto quando lembro daqueles momentos.

  

Aquela não foi uma despedida triste, mas uma despedida com muito amor. Naquelas doze horas, desde o necrotério até o velório, ela deu a mim e ao meu irmão todo o amor e carinho que ela não foi capaz de dar em vida. Para mim foi uma lavação de alma, uma catarse, momentos de resolução interior.

  

Passei o domingo todo tendo momentos seqüenciais e ininterruptos de epifanias que, na somatória, eu só posso definir como estado de graça. Paradoxalmente, aquele domingo ensolarado foi um dia de alegria ao invés de tristeza. Minha mãe havia partido, mas o meu choro era de quem se entristecia porque uma companheira havia viajado para um mundo melhor, assim como choramos quando nossos entes vão morar em outros países, mas terão uma vida melhor. Ela finalmente estava descansando e isso me bastava. Eu não conseguia ter aquele choro egoísta, muito comum quando se perde alguma coisa. Não, aquela tristeza que apertava o meu coração servia apenas para me lembrar de que ela estava mais perto de Deus e havia cumprido sua missão. Foram momentos intensos, de gratas lembranças e amor sincero e desinteressado.

 

Esses momentos todos me deixaram uma influência tão forte e positiva que afagaram e afagam meus momentos de saudade como se minha mãe estivesse me acariciando.

 

Esta semana que passou foi o tempo da burocracia, de colocar as coisas em ordem. Os momentos que meus compromissos me permitiram eu usei remexendo e ordenando seus documentos, fotos, pertences, etc. Quem já passou por isso sabe do que estou falando. Cada pequeno detalhe revela partes de uma vida ou reforça a impressão que temos do caráter daquela pessoa. Também há a sensação surreal pela qual o nosso cérebro passa ao enfrentar o jogo de lógica e emoção (pelo qual todos passam) onde eu sei que nunca mais a verei, mas o meu emocional se recusa a aceitar essa realidade tão simples e inexorável. É um jogo que nos deixa levemente atordoados, mas em meio a esses percalços, a sensação que me vem é a de ternura. Não é o sentimento de perda, mas de conforto; não é o sentimento de revolta, mas de agradecimento.

  

É como se minha mãe tivesse guardado todo o seu amor para me dar no dia de sua despedida final. É como se eu houvesse ganhado um presente que perdurará para sempre.

  

Ainda hoje, passo o dia todo pensando nela lembrando de passagens boas e ruins que tivemos. Não tenho deixado de fazer nada no meu dia a dia, mas a presença dela é constante, não como uma sombra, mas como uma companhia boa e protetora. Uma companhia que vive dentro de mim, e não fora como as pessoas com quem compartilho as minhas experiências cotidianas. Ela agora vive dentro de mim, algo muito mais profundo do que sua presença física.

  

Eu sei que nos próximos dias e meses vou chorar de saudades (um grande amigo me disse que passou alguns anos vivendo momentos onde chorava a ausência da mãe), mas também sei que não será o choro amargo daqueles que não conseguem ver o lado bom da vida.

  

Pensando nos dois dias de despedida que minha mãe me proporcionou, concluo que Deus foi muito generoso comigo e com meu irmão e a prova é a sensação de bem estar que ainda me acompanha ao lembrar de minha querida Mamãe (sim, com M maiúsculo).

  

Tenho certeza que é esta sensação que me acompanhará pelo resto da vida. É verdade que eu sinto uma pequena tristeza em meu coração, mas também sinto uma sensação positiva me dizendo que do convívio com ela, por mais de 50 anos, a palavra que permanece é: Valeu!

  

Um abraço mamãe, onde quer que você esteja.                                                    Walter Miranda – São Paulo - 17/07/2005

 

Walter Miranda
Ateliê Oficina FWM de Artes
Todos os Direitos Reservados.