Walter Miranda
Artista Plástico

Catálogo Tempo Insular

2022

Walter e Flávia Miranda

TEMPO INSULAR

 

“A Arte existe porque a vida não basta”.

 

Essa frase, escrita pelo poeta brasileiro Ferreira Gullar (1930-2016), nunca foi tão atual e significativa. Não importa a época, a cultura, a religião, a raça etc., o espirito humano sempre sentiu necessidade de se expressar por meio de recursos artísticos. Esse é um dos fatores que nos diferencia das demais criações da Natureza, a mãe Gaia.

O tempo do isolamento devido à covid-19 serviu para muitos artistas criarem obras de arte. Não foi diferente comigo. Não bastava estar protegido, resguardado e bem acompanhado. Não bastava a internet para me integrar com distantes amigos, parentes, artistas ou para me manter atualizado sobre os acontecimentos no planeta. A vida não foi suficiente e a Arte brotou em vários sentidos, de várias formas, com várias desculpas, motivos e temas. Foi um tempo pra pintar porque a vida não bastou!

Foi um tempo de epidemia; um tempo de recolhimento; um tempo de dormências; um tempo de esperanças; um tempo de desesperos; um tempo de descobrimentos; um tempo de empatias; um tempo de egoísmos; um tempo de covardias; um tempo de traições; um tempo de heroísmos; um tempo de angústias; um tempo de decepções; um tempo de tristezas; um tempo de surpresas; um tempo de flores; um tempo de chorar; um tempo de rir; um tempo de amar; um tempo de odiar; um tempo de exaltações; um tempo de abominações; um tempo de uniões; um tempo de separações; um tempo de alienações; um tempo de aversões; um tempo de libertação; um tempo de salvação; um tempo de autoconhecimento; um tempo de saúde; um tempo de morrer; um tempo de reviver; um tempo de dor; um tempo de paz; um tempo de plantar; um tempo de colher; um tempo de afastamento; um tempo de integração; um tempo de refletir.

Enfim, foi um período de insulamento e as obras desse Tempo Insular são o resultado dos meus momentos vividos em uma fase da vida que, como postulou a Dra. Margareth Dalcolmo (1954) em seu recente livro, é “Um Tempo Para Não Esquecer”.

Dessa forma, a Arte me serviu como válvula de escape, de reflexão, de encontro e de introspecção, em vários dos momentos que mencionei e que me propiciaram a criação de algumas obras pungentes outras poéticas; algumas críticas outras exultantes; algumas exaltando a vida outras questionando a falta de empatia; algumas mostrando o lado belo do ser humano outras despertando um certo descrédito na humanidade. Esses meus momentos de inflexão me conduziram ao sabor de cada situação sem que eu oferecesse resistência. O resultado são as obras que compõem essa exposição denominada Tempo Insular.

Embora a preocupação inicial maior fosse com os idosos, havia também a preocupação do sistema médico mundial em proteger as gestantes e seus filhos. Isso me inspirou a criar alguns trabalhos referentes à gravidez e eles passaram a fazer parte da recorrente série denominada Exaltação a Gaia, que venho desenvolvendo desde a década de 1990. Ela faz uma correlação com a vida planetária ao associar a mãe Terra e a maternidade humana. Os quadros dessa série exaltam a importância do planeta Terra, uma célula universal que abriga uma diversidade biológica imensa, mas também expõe a sua fragilidade representada pelo equilíbrio dos bailarinos que reverenciam a mãe Gaia, a deusa grega que representa a Terra e a Natureza. Ao mesmo tempo, os trabalhos fazem uma analogia com três componentes importantes do nosso sistema planetário: Terra, Lua e Sol como elementos geradores de vida na forma como conhecemos e das condições para a sua manutenção.

Dentro desse mesmo ímpeto, surgiu o trabalho denominado Chip Metafísico Universal, composto por capacitores eletrônicos e mini lâmpadas led sobre placas de circuito eletrônico pintadas por mim. Nele o planeta Terra, pintado em óleo sobre tela, está no centro como se fosse um processador eletrônico virtual e irradia linhas energéticas da mesma forma que as linhas de um chip eletrônico real conduzem energia para os demais componentes do circuito eletrônico. Assim, em termos filosóficos, o centro do universo seria aqui, da mesma forma que todo e qualquer ponto universal seria o centro desde que o observador lá esteja.

Do risco de contaminação pela doença até a insólita infecção que me assolou mesmo estando isolado há um ano, surgiu o projeto para a instalação Covidianis Plana Terrae. Ela consiste na utilização de vários elementos pictóricos e objetos tridimensionais estrategicamente distribuídos em um espaço, de 2 x 4m, que pode ser considerado claustrofóbico. A instalação é composta da seguinte forma:

a) Um quadro homenageia todos os funcionários da área da saúde que, para mim, foram os verdadeiros heróis ao batalhar na linha do front contra um inimigo invisível e perigoso, uma constante nessa atividade profissional principalmente durante as pandemias históricas. Esse quadro apresenta na parte superior um painel tridimensional (pintado com a técnica da pintura a óleo) mostrando um médico da Idade Média e médicos e enfermeiros contemporâneos usando roupas e equipamentos de proteção. Ao lado deles há duas faixas com elementos eletrônicos retirados de computadores que, pela similaridade de forma, representam o coronavírus. No centro do quadro estão as silhuetas de três bailarinos (pintadas com camadas de tinta a óleo espirradas) representando a humanidade em momentos de reconhecimento e de medo, bem como a representação esquemática e figurativa do coronavírus, além de dois componentes eletrônicos retirados de partes internas de computadores também representando os vírus. Na parte inferior do quadro há um monitor de PC com imagens da gripe espanhola em 1918, da atual pandemia e a imagem de um médico da Idade Média. Ao lado do monitor, estão duas representações da Yersinia pestis (bactéria causadora da peste bubônica) e do vírus da gripe espanhola. Também ao lado do monitor há duas placas de computadores (serradas e esmerilhadas por mim) contendo a suposta data da peste bubônica e da gripe espanhola. Das placas saem dois cabos elétricos em direção às imagens da bactéria e do vírus.

b) Dentro da instalação há um trabalho denominado Fábrica de Caixões que contém um moedor industrial de carne que tritura o planeta e o devolve moído em fileiras de mini caixões representados por chips eletrônicos ao lado de centenas de mini botões eletrônicos que representam as vítimas fatais da pandemia. Mais abaixo, representações tridimensionais do coronavírus flutuam sobre pequenos caixões de madeira, sendo que dois deles apresentam a inscrição “eu/você?”.

c) Quatro quadros denominados Corona Mundi foram criados utilizando diversos refugos e componentes eletrônicos sendo que a silhueta pintada dos continentes representa o vírus se espalhando pelo planeta.

d) Dois trabalhos tridimensionais representam na frente e no verso duas faces do planeta, como se ele fosse plano, e se contrapõem a uma terceira obra composta por uma esfera pintada com os continentes em sua real posição. A questão da esfericidade do planeta ou sua suposta planicidade gerou esses três trabalhos que foram incorporados à instalação para representar o forte ressurgimento na cultura mundial da antiga teoria da Terra plana. Minha intenção foi questionar esses ultrapassados valores culturais, pois a meu ver, esse tipo de pensamento teórico baseado em conceitos medievais e arcaicos traz em seu bojo vários outros conceitos retrógrados referentes à ciência, religião, saúde etc. e reforçam um negacionismo frente ao crítico tempo insular vivido por todos nós. Abaixo da esfera que representa o planeta em sua forma verídica estão 26 seringas sem agulhas que aludem à falta de medicamentos para tratar os efeitos deletérios da pandemia.

e) Dois quadros denominados Cloroquina, o Pão Nosso de Cada Dia? 1 e 2 apresentam o planeta Terra rodeado por semiesferas feitas de papel artesanal (que eu produzi) e incrustadas de transistores que representam o coronavírus. Alguns comprimidos de papel artesanal, também feitos por mim, representam comprimidos de cloroquina e centenas de mini botões eletrônicos interruptores táteis representam uma multidão de pessoas que rodeiam o comprimido em busca de uma pretensa proteção.

f) A instalação está infestada com várias representações bi e tridimensionais do coronavírus espalhadas pelo ambiente tanto nas paredes quanto flutuando no ar e causando a impressão de que podemos ser atingidos pelos vírus.

g) Centenas de equipos hospitalares estão espalhados pelas paredes e envolvem os observadores que ocupam o espaço causando a sensação de ambiente hospitalar onipresente. Além disso, para adentrar ao espaço da instalação, os espectadores passam por uma cortina feita também com equipos hospitalares e que cria uma atmosfera separada dos demais ambientes da exposição em uma zona isolada e insular.

h) Resolvi incluir outro moedor de carne à instalação Covidianis Plana Terrae para a exposição “Tempos Insulares”, pois eu acrescentei vários mini rotores de imã permanente cuja aparência têm ligeira similaridade com a imagem bidimensional do corona vírus. A função deles nesse trabalho é estabelecer uma correlação entre a tecnologia humana e a biologia molecular. Essa obra fez parte da série “Cartografias de Gaia” e representa o problema que a sociedade contemporânea está criando com o excesso de lixo não reaproveitado e jogado em todos os cantos do planeta.

Ao longo da minha produção artística, determinados temas filosóficos sempre são recorrentes e com a pandemia da covid-19 não poderia ser diferente. Na década de 1990, eu criei uma série de trabalhos denominada Admirável Nova Idade Média. O termo “Admirável” é derivado de outra série de quadros pintados anteriormente por mim, influenciado pelo livro “Admirável Mundo Novo” escrito por Aldoux Huxley. A série foi criada depois de analisar as atitudes humanas da época e procurar entender melhor sua trajetória temporal por meio de estudos históricos. Percebi então um forte paralelo na história: a Idade Média. Todo o sentido de violência, insegurança; solidão; desespero social; riscos de epidemias; controle religioso; relações profissionais; deslocamento espacial; dependência do governo; injustiças sociais; angústias pessoais etc., que ocorriam naquela década tinham, a meu ver, certa similaridade com o período histórico do passado. Assim, achei interessante provocar no espectador reflexões sobre o presente e o futuro usando as experiências do passado em uma abordagem análoga ao cíclico espaço tempo continuum, embora eu acredite que o tempo não deva ser representado exatamente por um círculo e sim por uma espiral (muito mais dinâmica, como é a vida), que tem algumas características aparentemente cíclicas, porque nasce em um ponto e cresce continuamente passando sempre pelos mesmos quadrantes que provocam certas similaridades, porém sem se repetir. Na época em que pintei os trabalhos dessa série, o risco de graves epidemias já era uma preocupação para algumas autoridades sanitárias mundiais, devido às facilidades com que os vírus e bactérias podem ser disseminados. Isto tem gerado o mesmo risco que havia na Idade Média com as pestes, agora concretizado com a atual pandemia da covid-19. Na verdade, o insulamento reforçou ainda mais a sensação de que ainda estamos revivendo esse paralelo histórico e, por isso, resolvi incorporar na exposição Tempo Insular o trabalho relativo à questão da saúde. Para tanto, atualizei alguns elementos do trabalho denominado Admirável Nova Idade Média - Novo Corona 1.9 e incorporei novos elementos eletrônicos e imagéticos que se referem ao momento atual nesse início de século.

Outra situação que gerou trabalhos durante o período de isolamento foi a dicotomia entre os que acreditavam no risco provocado pela pandemia e os que negavam a seriedade da situação. Assim, surgiu a série de quadros denominada Está nos Olhos de Quem Vê - Olhar Pandêmico 1, 2 e 3 e o quadro Torre de Babel-2. Os três primeiros abordam a evolução da pandemia pelo mundo afora por meio da representação pictórica de olhos verdes, castanhos e azuis e da inclusão de elementos eletrônicos característicos da tecnologia atual que geram uma imagem estilizada do vírus. A Torre de Babel-2 aborda a polarização entre os negacionistas e os defensores da ciência a respeito da pandemia da covid-19.

A análise sobre esses contrapontos filosóficos me conduziu a uma reflexão sobre a condição humana ao longo das eras e culminou na criação da série de trabalhos denominada Evolução Pari Passu em que quatro trabalhos representam a evolução do nosso domínio tecnológico (durante a Pré-história, Antiguidade, Idade Moderna e Idade Contemporânea), comparada com a movimentação dos continentes ao longo dos milhões de anos. O primeiro quadro representa o início do percurso humano sobre o planeta por meio de pegadas deixadas durante a fase coletora; pinturas rupestres que se referem à fase de caçador; a observação da natureza por meio da observação da forma geométrica elíptica e a concepção primal da existência do Sol e da Lua como parte de seu habitat. Os continentes estão unidos em um supercontinente conhecido como Pangeia. O segundo quadro representa a ocupação espacial do planeta; a invenção da escrita; o aprendizado da matemática; a associação de fenômenos da natureza com superstições e posterior entendimento lógico deles; o domínio de técnicas agrícolas, arquitetônicas e materiais; o início do domínio da eletrônica. Os continentes estão um pouco afastados entre si. O terceiro quadro representa o momento atual em que a humanidade se encontra sendo que o domínio tecnológico se correlaciona com o risco de hecatombes ambientais e atômicas. Os continentes são apresentados na posição atual. O quarto quadro representa um futuro distante em que os continentes estarão unidos novamente em um hipotético supercontinente denominado Novopangeia, Neo Pangeia, Pangeia Próxima ou ainda Pangeia Última, sendo que a maioria dos registros da nossa civilização estará apagada, permanecendo poucas pistas da presença humana representadas pelas silhuetas dos pés e de uma mão.

Outro trabalho, denominado Evoluções Paralelas, também apresenta correlação com a evolução humana, porém agora comparada com a absorção de conhecimentos ao longo do tempo. Assim, a primeira fase é representada pela percepção dos elementos astronômicos, tais como, o Sol, a Lua e as estrelas, pela subsistência por meio da caça e coleta indo até o domínio do fogo. A segunda fase é representada pela invenção da roda, da escrita, da matemática e de esquemas teóricos explicativos do mundo e do universo. A terceira fase é representada pela maçã Newtoniana, sua equação matemática gravitacional e pela notória equação matemática de Einstein. A quarta fase se refere ao momento atual em que a humanidade se encontra sob o risco de autodestruição, representado pela imagem de um cogumelo atômico e por alguns elementos tecnológicos, sendo que um deles, de forma circular, faz correlação com a Atlântida, cidade mencionada por Platão e destruída por um cataclismo natural.

 

O período de insulamento também me fez pensar sobre a condição humana e refletir sobre a questão da nossa influência no planeta. Por isso, criei mais quatro trabalhos específicos sobre a situação ambiental e ecológica que está criando uma armadilha tecnológica para a humanidade. Assim, nasceram os trabalhos denominados Ratoeira Tecnológica 2, Pendular, e Clausura Tecnológica 1 e 2. Neles o planeta é colocado como refém das consequências ambientais criadas pelo ser humano sendo que a intenção desses trabalhos é instigar questões filosóficas sobre o risco de uma calamidade ecológica global provocada pela humanidade ao fazer uso descontrolado da tecnologia criada após a revolução industrial.

Entretanto, o tempo de clausura não foi apenas um tempo de tristes reflexões, houve também momentos em que a natureza, por exemplo, gerou o ímpeto de representar algumas belas tardes coroadas pelo por do sol e, assim como na série Skyline, iniciada a partir de 2017 inspirada nas cores de Velazques e Turner e posteriormente nas geometrias Mondrianas, usei diversas placas de computadores, celulares, aparelhos eletrônicos etc. contrapostas a um fundo quadricular pintado com várias camadas de tinta espirrada, cujo efeito visual se refere ao por do sol. As placas representam os prédios das cidades e a geometria do céu está baseada no uso que faço de divisões geométricas que compõem os meus quadros e por isso resolvi denominar a série de Por do Sol Walteriano. Além disso, a divisão geométrica do céu faz referência direta aos pixels cromáticos de imagens eletrônicas quando ampliadas ao máximo. Assim sendo, os trabalhos dessa série apresentam uma correlação visual e metonímica entre as placas, a geometrização do céu e a interpretação dos observadores.

Outro trabalho denominado Espaço-tempo Virótico foi composto por várias placas eletrônicas antigas, recortadas e justapostas por mim e que tiveram um por de sol urbano pintado sobre elas. Embora pintadas em dégradé, as faixas da atmosfera que escurecem ao se aproximar do espaço foram pintadas respeitando a forma geométrica das placas. Sobre essas placas antigas foram colocadas placas eletrônicas atuais recortadas em forma circular e na borda delas foram aplicados componentes eletrônicos que representam as espículas do novo coronavírus. Assim, essas placas redondas se correlacionam visualmente com o coronavírus se apoderando do planeta, pois no interior delas, os continentes foram pintados em forma positiva e negativa. Ainda dentro das placas cortadas na forma circular foram aplicados números que nos remetem às horas do dia e insinuam o tempo em que vivemos, porém sem determinismo porque não existem os ponteiros desse relógio imaginário. Em resumo, a correlação entre o espaço e o tempo ocorre devido às sugestões imagéticas da forma virótica e da noção temporal induzida pelos números de um relógio invisível.

 

Durante a pandemia, assistimos a questão do racismo mundial ganhar visibilidade por meio de publicações na imprensa e nas mídias sociais sobre a violência policial. Diante das manifestações populares denominadas “Vidas Negras Importam” que protestaram contra o racismo, algumas pessoas se sentiram incomodadas com essa frase e perguntaram: Por que dizer isso já que todas as vidas importam? Essa questão gerou o trabalho denominado Vidas Negras Importam, pois a meu ver, embora todas as vidas sejam importantes, as vidas de pessoas negras têm sido menosprezadas pelos sistemas sociais e econômicos em que as pessoas de pele escura sempre tiveram que lutar para ter os mesmos direitos das pessoas de pele clara. Só isso já bastaria pra dizer que vidas negras importam. Se não fosse assim, por que lutamos para conquistar liberdade ao viver sob ditaduras? Se não fosse assim, por que lutamos por direitos sociais justos? Se não fosse assim, por que as mulheres lutam por direitos iguais? Se não fosse assim, porque a comunidade LGBT luta por direitos iguais? Se não fosse assim, por que lutamos contra as injustiças que nos são impostas? Dessa forma, senti a necessidade de me expressar por meio de uma obra cujo título faz uso e reforça a importância da frase “Vidas Negras Importam”.

Falta mencionar dois trabalhos que criei durante a pandemia, cujos estudos já estavam prontos há algum tempo, mas eu não havia encontrado o tempo necessário para finalizá-los. Assim, nada como a paralização das tarefas prosaicas provocadas pelo insulamento para que eles pudessem se concretizar. Nesta série que denominei Dicotomias Humanas concretizei uma proposta pictórica e filosófica em que abordo o potencial humano para fazer coisas belas ou destrutivas dependendo do ímpeto filosófico, social, financeiro, religioso etc. Usei três exemplos recentes que me instigaram para pintar dois quadros que representam a capacidade de superação e de descaso humano. O primeiro trabalho apresenta o notório resgate dos mineiros chilenos. O segundo trabalho aborda as consequências dos dois desastres ecológicos provocados em Mariana e Brumadinho, no espaço de quatro anos, pelo desleixo de uma única empresa. O contraponto entre esses dois trabalhos está no fato de que, quando o ser humano quer, ele se dedica a algo construtivo e heroico, como foi no caso do Chile. Porém, o usual é o descaso, a falta de planejamento e de respeito para com a vida humana, animal, vegetal e para com o ambiente ecológico, como ocorreu no caso das duas cidades mineiras. Em outras palavras, esses dois trabalhos ganharam sentido de atualidade porque apresentam exemplos diferentes da dicotomia humana quando penso que durante a pandemia convivemos com heroísmos absolutos, por um lado, e com descasos e desrespeito à vida, por outro. Ambos deixaram como herança momentos de júbilo e mazelas indeléveis.

Por fim, o suporte para todos os trabalhos incluídos nessa exposição variou da tradicional tela, passando pela madeira, objetos tridimensionais feitos com papel artesanal fabricado por mim e, até mesmo, placas de circuito impresso para computadores e aparelhos eletrônicos diversos.

Os materiais usados incluíram moedores de carne; placas de computador; chips eletrônicos integrados; mini botões eletrônicos interruptores táteis; mini lâmpadas led; capacitores; resistores; diversos componentes eletrônicos; lentes fotográficas e de scanner; placas de computador; placas de circuito impresso sem componentes integrados; hds abertos; bureta; toquinhos de madeira; lentes de óculos; cúpulas de vidro e acrílico; placas de acrílico; placas de circuito para pen drive; cabos paralelos; suporte para espelho; imagens digitalizadas etc. Algumas das placas foram serradas e esmerilhadas para obter diversas formas, inclusive figurativas, ou foram escolhidas devido à suas formas geométricas, mas todas tiveram suas cores estudadas para contrapor ao fundo pintado por mim complementando-o visualmente.

Quanto à técnica artística, procurei criar obras que valorizem o desenho, a forma, a composição e a cor, porém, transmitindo a minha expressão pessoal devido à combinação desses conceitos técnicos com o uso de elementos tecnológicos alheios ao universo da pintura tradicional. Assim, usei a pintura a óleo para criar texturas e efeitos visuais peculiares por meio de sobreposições de cores em camadas de tinta espirrada ou enrugada e pinceladas expressionistas ou abstratas que foram aplicadas tanto ao fundo quanto às silhuetas de figuras em alto relevo que, desenhadas em estilo realista sobre papelão, foram recortadas e coladas nos trabalhos. A incorporação de elementos bidimensionais e tridimensionais gerou planos geométricos pictóricos e visuais, pois cada um deles está a uma distância diferente do espectador. Isso me propiciou o desafio de criar relações e correspondências entre os elementos de cada quadro para obter uma expressão plástica em que a estrutura da composição trabalhasse a favor do conceito que eu queria expressar. A conjunção de silhuetas humanas com elementos pictóricos, além de elementos produzidos pela tecnologia e pela natureza, convidam o espectador a percorrer com os olhos, e até mesmo com o tato, a superfície de cada obra, instigando nele avaliações filosóficas e pragmáticas sobre a questão do meio ambiente e do homem no planeta.

Dessa forma, ao usar a tradicional técnica da pintura a óleo com a incorporação de novos elementos materiais, procurei colocar em foco o uso de novos procedimentos artísticos e conceituais referentes à técnica e objetivos da Arte Contemporânea.

Acredito que esses fatores geram afinidades simbólicas e se valorizam mutuamente em trabalhos que tentam resgatar o “prazer de se ler uma obra de arte”. Espero que, a cada nova observação, meu trabalho possa revelar novos detalhes para que o espectador faça várias leituras da minha Arte.

Ao todo, durante o período de isolamento, foram criadas 67 obras, sendo 63 delas apresentadas nessa exposição como resultado do meu insulamento que acredito ter deixado uma mensagem positiva e a sensação de um tempo bem aproveitado.                                     

                    Walter Miranda  Dezembro/2022

 

Catálogo Bilíngue (Português/Inglês) da Exposição "Tempo Insular"
Walter Miranda
Ateliê Oficina FWM de Artes
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