Walter Miranda
Artista Plástico

Os Direitos Humanos na Arte de Walter Miranda e a Crítica Ontológica    

2020

Mirian de Carvalho

Os Direitos Humanos na Arte de Walter Miranda e a Crítica Ontológica

Mirian de Carvalho

(Associação Brasileira de Críticos de Arte / Associação Internacional de Críticos de Arte / Universidade Federal do Rio de Janeiro) 

                                                

Ante o flagelo da Covid 19, agravado no Brasil em virtude de problemática que atinge sobretudo a classe trabalhadora, os desempregados e as minorias étnicas, torna-se relevante refletir sobre a arte como trabalho do ser social, visto que a arte pode ser pensada como produção mediadora de processos emancipatórios, ao enfoque da crítica ontológica. Numa leitura de György Lukács, tal crítica abrange aspectos intrínsecos e extrínsecos à produção artística. E, das categorias instrumentalizadas por esse filósofo, menciono neste texto: o símbolo, por trazer o geral ao particular; a catarse por abranger a empatia; o complexo, como amplitude da totalidade; a mimese, como referencial dialético.

 

Despertou-me para tal enfoque a arte de Walter Miranda, a partir de duas mostras realizadas em São Paulo, em 2018 e 2020, referendando os Direitos Humanos.  Em ambas as mostras, a tessitura do espaço produz tensões por meio do estranhamento, a “provocar na sociedade novos fatos ontológicos” [i], porque a criação artística  se articula com o complexo sócio-histórico:

Para compreender a especificidade do ser social é preciso compreender e ter presente essa duplicidade: a simultânea dependência e independência de seus produtos específicos em relação aos atos individuais que, no plano imediato, fazem com que eles surjam e prossigam.[ii] 

 

Tais dependência e independência subsomem a relação entre o indivíduo e o real.  Entretanto, as categorias poéticas não se fundam na natureza, nem na sociedade. Por isso a crítica ontológica se pergunta pela peculiaridade do poético numa relação sócio-histórica com o fruidor, aos desdobramentos da poiesis. A poiesis se relaciona ao fazer, que se inicia no trabalho da matéria, e se completa na fruição, por meio da catarse. Tal dinâmica, envolvendo um complexo de determinações do real, explicita diferenças, antíteses e dados circunscritos ao trabalho artístico. Ao fruidor é dado captar contradições a serem superadas.

 

Na arte de Walter Miranda, as qualidades do espaço tangenciam o campo sensorial e o campo ideativo, despertando a pergunta drummondiana: “E, agora, José?”. Ao perscrutar o espaço nas mostras intituladas Cartografias de Gaia[iii] e Ode à vida[iv], ambas disponíveis em catálogo virtual, enfatizei três ordens de estranhamento: heterotopias, seriações e desconstruções da geometria. 

 

Em Cartografias de Gaia, o artista aborda a importância da sustentabilidade ecológica em oposição aos danos causados pelo uso descontrolado das tecnologias. Walter Miranda reuniu quadros, objetos, instalação e performance que enfocam o mapa-múndi. Em Cartografias de Gaia, as heterotopias determinam-se como aglomerações de produtos de origem animal, vegetal e inorgânica: chaves; CDs; fósforos; aparas de lápis; autofalantes; conchas; sementes; cartões de crédito; invólucros de agulhas de acupuntura; relógios; peças de vidro, inclusive vidro moído, etc, misturados à pintura. Aparentemente, as heterotopias tornam o espaço impensável e inominável. Mas é esse o telos desse estranhamento: chegar ao inusitado para realizar a simbologia da vida.

 

Nos quadros, o artista também definiu estranhamento relativo ao contorno. Em meio a invenções cartográficas, destaque-se a América do Sul posicionada ao Norte, em Avesso do avesso, num mapa mostrado em espelho. As várias peças tridimensionais são igualmente compostas e ou revestidas por heterotopias. Entre elas, há uma Torre de Babel feita de teclados de computador. Destaco também três peças feitas com placas de computador: Livro de Gaia I, Livro de Gaia II e Livro do Porto, sendo o texto sugerido por objetos de tamanho pequeno. Em meio a tais peças, o artista incluiu uma instalação e uma performance com a mesma temática questionadora dos ditames do capitalismo financeiro. 

                               

                                                      Livro do Porto (2018) -27 cm x 31 cm x 7 cm

 

Nesse conjunto de trabalhos, contrastam cores claras e lúgubres, na metáfora da oposição “vida x morte”.  E, sob vários aspectos, muitas imagens exaltam a vida nascente. Como exemplo, surge luminoso azul, pronto à fecundação da vida num grande mapa-múndi cercado de mouses e teclados, em Fecundationis Artificiosae (2018), enquanto, em América do Sul (2007), as heterotopias pedem decifrações simbólicas, despertando a consciência atuante.                                            

                                    

  

   

        América do Sul (2007) – 83 cm  x 88 cm

 

Em Ode à vida, em releitura da sua produção artística concebida a partir de 1977, o artista organizou núcleos temáticos igualmente relacionados aos Direitos Humanos, transparecendo nos títulos: Vidas negras importam; Ser e não ter, ter e não ser: eis a Etiópia; Simetria ecológica, social e política. Nessa mostra, em muitos trabalhos localizam-se também as referidas heterotopias. Passo então à análise de duas outras instâncias técnico-expressivas muito significativas na arte de Walter Miranda: as seriações e as desconstruções da geometria.

 

As seriações definem-se pela repetição de imagens semelhantes ou iguais, num mesmo trabalho, ou num conjunto de trabalhos, mas podem surgir também como conjunto de imagens diversificadas dentro de um núcleo temático.  À análise das seriações, escolhi 1984: O estigma de George Orwell I e VIII, pertencentes a um conjunto de quadros a óleo sobre papelão, em que o estranhamento resulta das repetições de motivos semelhantes. 

 

Era 1949. No romance chamado 1984, de George Orwell, o Big Brother passou a controlar corpos e mentes. Em 1983, numa transitividade do literário ao pictórico, Walter Miranda realizou 1984: O Estigma de George Orwell. E, neste ano de 2020, tais quadros atualizam a mimese do real e de seus espaços reais.

 

   1984: O estigma de George Orwell I (1983) – 88 cm x 62,5 cm

                                                              

    1984: O estigma de George Orwell VIII (1983) - 88 cm x 62,5 cm

 

Nesse conjunto de quadros, pessoas de ambos os sexos, e rostos angulosos quase indiferenciados, remetem o visitante aos algoritmos e senhas que nos carimbam virtualmente. Andando pelas ruas, todos passam por inscrições indecifráveis: carestia, fome, recessão, FMI, etc. A marcha mecânica lhes é imposta, tal se faz com o gado no matadouro. Em 1984, o fruidor pressente a reificação do humano. Ali estão o treinamento e a disciplina herdados do taylorismo e do fordismo, passando pelo toyotismo e, hoje, pela uberização, que se aperfeiçoa pelas novas tecnologias. 

 

Walter Miranda não pintou o trabalhador na fábrica, nem no supermercado, nem no banco. Mas, ao modo do não dito na poesia, o não pintado instaura imagens e sentidos simbólicos. Ali está a classe trabalhadora, antes e hoje. Ainda na linha das seriações, aqui destaco dois quadros-objeto: pertencentes ao núcleo denominado Vidas negras importam, Cloroquina, o pão nosso de cada dia I e Cloroquina, o pão nosso de cada dia II, realizados em 2020, tematizam a violência do biopoder a serviço da destruição da vida. 

                                                        

Em Ode à Vida surge outra forma de estranhamento: as desconstruções da geometria. Em Bosh + 500 – Juízo final, óleo, objetos, tela sobre madeira, numa interpretação da imagística de Hieronymus  Bosh, no tríptico de Walter Miranda, o Juízo Final transcorre entre efeitos da destruição ambiental e das hierarquias sociopolíticas, que submetem os povos ao poder da moeda, numa versão atual dos suplícios imaginados por Bosh: fogueiras mortais; incêndios climáticos; explosões atômicas, fome, miséria, povos em fuga. Entre ameaças, a Terra e os humanos convivem com imagens enigmáticas: astros, maçã, aves, avião, figuração da Justiça, pássaros, homem sem cabeça, entre outras figurações do realismo encantatório. 

                                               

                         Bosh + 500 – Juízo Final (2016) – 73cm x 58 cm

 

Frequentes no trabalho de Walter Miranda, as desconstruções da geometria mostram desdobramentos da poiesis, trazendo o ser de razão ao mundo sensível, numa passagem da ciência à arte. E assim, a espacialidade geométrica adquire densidade, profundidade, flexões, planos reversíveis, movimento, ao que se somam as mutações da cor e da luz. O colorido transforma a neutralidade do espaço geométrico, tornando-o palco dos acontecimentos do mundo e vereda de contradições a serem superadas. E a Terra se recria entre símbolos do caos em busca da decifração, que se inicia na desconstrução da razão monológica e prossegue desguardando fronteiras para inconter limites. E uma criança deitada de bruços chama o visitante. Pela catarse, o fruidor deseja que a criança respire. E consegue reanimá-la. A práxis é possível.

 

Não foi por acaso que, em Ode à vida, Walter Miranda incluiu as Transposições Sinfônicas, seriações realizadas ao som das sinfonias de Beethoven, revivendo no Romantismo o ímpeto libertário do ser social.  

 

Referendando no pensamento de Lukács a aproximação entre Estética e da Ética, a crítica ontológica se ocupa da transição da técnica à arte. Nesse trânsito, em minha análise da arte de Walter Miranda, reenfatizo a relevância do estranhamento espacial. As heterotopias englobam oposições e mesclas, tornando possível realizar o irrealizável. As seriações sugerem releituras dos caminhos da repetição e da reprodução, buscando alternativas de ordem dialética a partir da mimese. E, sob o ângulo das desconstruções da geometria, viabiliza-se a passagem da teoria ao sentimento, favorecendo a catarse, que acolhe o outro na sua completude e antropomorfiza o espaço. 

 

Nessa convergência de instâncias técnico-expressivas há tensões imagísticas, entrecruzando franjas dos espaços poético, físico e social. Assim, na arte de Walter Miranda, referência aos Direitos Humanos transparece numa articulação do universal e do particular, exaltando a vida nos transcursos do lírico ao trágico e vice-versa. Em ambas as mostras, a oposição fundamental “vida x morte” se envolve no simbolismo do luminoso e do soturno, intensificando outras tensões que se acentuam pelas texturas. Note-se, ainda, que muitas imagens tangenciam o conceitual, ao perpassarem oposições que enfocam antropomorfização x fetichização.

 

Para sintetizar minha visitação a esse conjunto de trabalhos, vislumbro a vida ante a práxis do trabalho da mão sonhadora. A essa dádiva, acrescento: a mão que atua no processo artístico é diversa da mão que aperfeiçoa sapatos de sola vermelha, na linha dos valores de uso e de troca. A mão sonhadora resiste. E inventa o corpo sonhador.               

 

Na arte de Walter Miranda, o corpo sonhador se reconhece nas figurações do homem vitruviano inserido em vários trabalhos. Expandindo braços e pernas, ele simboliza a espécie humana: macho e fêmea atuantes no tecido poético. Eles ultrapassam limites geométricos. Suas silhuetas dançam, para vencer a morte antecipada.

 

Referências bibliográficas

LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer, Nélio Schneider. 2. Ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

MIRANDA, Walter. Cartografias de Gaia. São Paulo: FWM, 2018.

............................. Ode à vida. São Paulo: FWM, 2020. 

 

[i] LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer, Nélio Schneider. 2. Ed. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 27.

 

[ii] Ibidem, p.345.

 

[iii] Cf. MIRANDA, Walter. Cartografias de Gaia. São Paulo: FWM, 2018.

 

[iv]Cf. Idem. Ode à vida. São Paulo: FWM, 2020.

 

Walter Miranda
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